quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
A Lenda da Prostituta Evlyn Roe
Quando veio a primavera e o mar ficou azul
A Bordo chegou
Com a última canoa
A jovem Evlyn Roe.
Usava um pano sobre o corpo
Que era bonito, bem vistoso.
Não tinha ouro ou ornamento
Exceto o cabelo generoso.
“Seu Capitão, leve-me à Terra Santa
Tenho que ver Jesus Cristo.”
“Venha junto, pois somos tolos, e é uma mulher
Como não temos visto.”
“Ele recompensará. Sou uma pobre garota.
Minha alma pertence a Jesus.”
“Então pode nos dar seu corpo!
Pois o seu senhor não pode pagar:
Ele já morreu, dizem que na cruz.”
Eles navegaram com sol e vento
E Evlyn Roe amaram.
Ela comia seu pão e bebia seu vinho
E nisso sempre chorava.
Eles dançavam à noite, dançavam de dia
Não cuidavam do timão.
Evlyn Roe era tímida e suave:
Eles eram duros e sem coração.
A primavera se foi. O verão acabou.
Ela à noite corria, os pés em sujas sapatilhas
De um mastro a outro, olhando no breu
Procurando praias tranquilas
A pobre Evlyn Roe.
Ela dançava à noite, dançava de dia.
E ficou quase doente, cansada.
“Seu Capitão, quando chegaremos
À Cidade Sagrada?”
O capitão estava em seu colo
E sorrindo a beijou:
“De quem é a culpa, se nunca chegamos
Só pode ser de Evlyn Roe.”
Ela dançava à noite, dançava de dia
Até ficar inteiramente esgotada.
Do capitão ao mais novo grumete
Todos estavam dela saciados.
Usava um vestido de seda
Com uns rasgões e remendos
E, na fronte desfigurada tinha
Uma mecha de cabelos sebentos.
“Nunca Te verei, Jesus
Com esse corpo pecador.
A uma puta qualquer
Não podes dar Teu amor.”
De um lado para o outro corria
Os pés e o coração lhe começavam a pesar:
Uma noite, já quando ninguém via
Uma noite desceu para o mar.
Isso se deu no fim de janeiro
Ela nadou muito tempo no frio
A temperatura aumenta, os ramos florescem
Somente em março ou abril.
Abandonou-se às ondas escuras
Que a lavaram por dentro e por fora.
Chegará antes à Terra Sagrada
Pois o capitão ainda demora.
Ao chegar ao céu, já na primavera
Pedro, na porta, a recusou:
“Deus me disse: não quero aqui
A prostituta Evlyn Roe.”
E ao chegar ao inferno
O portão fechado encontrou:
O Diabo gritou: “Não quero aqui
A beata Evlyn Roe.”
Assim vagou no vento e no espaço
E nunca mais parou
Num fim de tarde eu a vi passar no campo:
Tropeçava muito. Não encontrava descanso
A pobre Evlyn Roe.
Bertolt Brecht
Tradução Pailo César de Souza.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
Oi Monica... escrevi algo sobre o pior de mim:
O pior de mim eu conheço bem. O pior de mim não sou eu. O pior de mim aparece muito quando estou comigo mesma. Não sei direito, mas parece que há uma tendência para o pior de mim. O pior de mim me ronda. Eu sempre estou procurando o melhor de mim. Mas o melhor de mim se esconde fácil, sempre atrás do pior de mim que aparece grande na minha frente. O pior de mim sou eu mesma ao mesmo tempo que sou o melhor de mim e é confuso, não é fácil enxergar essas coisas, é preciso além de ajustar as lentes, fazer um grande esforço. Certamente dançar ou escrever isso tudo pode ser tão libertador e tão divino ao ponto de re-conectar o verbo à ação, o ser estar, o presente, a coadunação do pior e do melhor de mim. O pior de mim não sou eu, não é você, o pior de mim é o que existe entre nós e nos separa. Parece que estou sempre esbarrando no pior de mim... e lembro que gostei do que você escreveu: O pior de mim possibilita o meu melhor.
O pior de mim eu conheço bem. O pior de mim não sou eu. O pior de mim aparece muito quando estou comigo mesma. Não sei direito, mas parece que há uma tendência para o pior de mim. O pior de mim me ronda. Eu sempre estou procurando o melhor de mim. Mas o melhor de mim se esconde fácil, sempre atrás do pior de mim que aparece grande na minha frente. O pior de mim sou eu mesma ao mesmo tempo que sou o melhor de mim e é confuso, não é fácil enxergar essas coisas, é preciso além de ajustar as lentes, fazer um grande esforço. Certamente dançar ou escrever isso tudo pode ser tão libertador e tão divino ao ponto de re-conectar o verbo à ação, o ser estar, o presente, a coadunação do pior e do melhor de mim. O pior de mim não sou eu, não é você, o pior de mim é o que existe entre nós e nos separa. Parece que estou sempre esbarrando no pior de mim... e lembro que gostei do que você escreveu: O pior de mim possibilita o meu melhor.
Loren Fischer
quarta-feira, 16 de dezembro de 2015
"Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã. 'Serei sua, disse ela, quando tiver passado cem noites a me esperar sentado num banquinho, no meu jardim, embaixo da minha janela.' Mas, na nonagésima nona noite, o mandarim se levantou, pôs o banquinho embaixo do braço se se foi."
"eu que me acreditava puro sujeito (sujeito submisso: frágil, delicado, miserável), me vejo transformado em coisa obtusa, que avança cegamente, que esmaga tudo sob seu discurso: eu que amo, sou indesejável, faço parte do rol dos importunos: aqueles que pesam, atrapalham, abusam, complicam, pedem, intimidam (ou apenas simplesmente: aqueles que falam). Me enganei. monumentalmente."
"Eu te darei mais do que você me dá, e assim eu te dominarei (...)."
"Poder da linguagem: com minha linguagem posso fazer tudo: até mesmo e sobretudo não dizer nada. Posso fazer tudo com minha linguagem, mas não com meu corpo. O que escondo com minha linguagem, meu corpo diz."
"Não posso me escrever. Quem seria este eu que se escreveria? À medida que entrasse na escrita, a escrita a esvaziaria, o tornaria vão; produzir-se-ia uma degradação progressiva, na qual a imagem do outro seria, também ela, pouco a pouco envolvida (escrever sobre alguma coisa é corromper esta coisa), abominação cuja conclusão não poderia deixar de ser: para quê? [...] escritor, ou considerando-me tal, continuo a me enganar sobre os efeitos da linguagem. [...] Alguém deveria me ensinar que não se pode escrever sem fazer o luto da própria 'sinceridade' (sempre o mito de Orfeu: não se virar).
Roland Barthes
Fragmentos de um discurso amoroso
quarta-feira, 9 de dezembro de 2015
Troca de e-mail com minha amiga Erica Fiod, companheira de vida há 20 anos! Parceira dos mais profundos devaneios! E das mais bobocas piadas!
oi amor,
tentei escrever algo (mais para mim do que para você) e quero compartilhar com você. O interessante é que muitas vezes "o pior de mim" é um ponto de vista, pois o que pode ser pior para mim em mim, para você, que me vê de fora, pode ser uma qualidade.
não acabei o texto ainda. É só vontade de compartilhar mesmo.
beijão,
Érica
Oi Erica!
Nossa, sua reflexão super se aproxima da minha.
Tem tanto de pior em mim... como vc me aguenta, amiga?
Love you!
Monica
oi amor,
tentei escrever algo (mais para mim do que para você) e quero compartilhar com você. O interessante é que muitas vezes "o pior de mim" é um ponto de vista, pois o que pode ser pior para mim em mim, para você, que me vê de fora, pode ser uma qualidade.
não acabei o texto ainda. É só vontade de compartilhar mesmo.
beijão,
Érica
O que há de pior em mim
O pior em mim é não ter jeito de viver nesse mundo. É a falta de habilidade para lidar com questões mundanas, materias do dia a dia. O pior de mim é a insegurança, a carência, a projeção em outras pessoas daquilo que falta em mim. O pior de mim e a espera, não importando quanto tempo tenha que ser: espera para aquilo que sonhei ou que projetei, aconteça. O pior de mim é, muitas vezes, sonho. É confundir sonhos, devaneios com realidade ou, o que chamam por realidade. O pior de mim é o ajuste, a conformidade para com as coisas que, de forma alguma, eu concordo, mas que nada posso fazer a fim de modificá-las.
O pior de mim é aquilo que não consigo captar, que me escapa, escorre pelas mãos feito areia. O pior de mim é o não entendimento dos fatos, da histórias, do que está de fato ocorrendo. O pior de mim talvez seja trocar realidades por sonhos, por devaneios; embora eu muitas vezes me pergunto o que seria das crianças e se elas levassem a sério que não se pode devanear e, consequentemente, o fracasso e perigo que seria o mundo. O pior de mim é quando acontece uma história, um fato e eu o distorço todo, causando mal entendido e, consequentemente, dor. O pior de mim é o esquecimento do que se passou e acabar por cometer os mesmos erros, os mesmos julgamentos e as mesmas ações. O pior de mim é o chulé, a preguiça de escovar os dentes, de tomar banho, de lavar as mãos após a realização de minhas necessidades fisiológicas. O pior de mim é a preguiça. O start das coisas. O gostar muito de dormir e querer dormir sempre, a toda hora que vem a preguiça. O pior de mim é a raiva que fica em mim quando sou magoada por alguém. O pior de mim é o não querer a convivência das pessoas que me ofendem, que não me respeitam por completo como pessoa, que têm preconceito em relação a mim. O pior de mim talvez seja o relaxo que ás vezes tenho comigo mesma. O pior de mim é querer viver uma realidade que não seja a minha, a ambição de ser alguém outro que não sou, achar que a vida dos outros é sempre melhor que a minha vida. O pior de mim é sempre me colocar para baixo mesmo que eu esteja certa na situação, é sentir culpa em relação a tudo e a todos, a todo momento. É achar que o problema da falta de acerto sou sempre eu, eu , eu. O pior de mim é querer enganar a mim mesma para amenizar a dor. O pior de mim é dar tudo o que eu tenho, tudo para fazer com que alguém se sinta bem ou melhor do que estava se sentindo. Mas o que há de pior em mim mesma é amar, amar, amar e muitas vezes, sem perceber, quebrar a cara por um amor que só existe dentro de mim.
Oi Erica!
Nossa, sua reflexão super se aproxima da minha.
O Pior de Mim aparece quando eu me coloco em crise. Quando não estou satisfeita comigo e quando sinto que não sei lidar com uma situação. O pior de mim aparece apenas para mim na maioria das vezes, quando me sinto enganada e usada, e desejo o mal do outro, mas me sentindo culpada no mesmo momento por desejar tais coisas. O pior de mim é quando não cumpro uma promessa feita a mim mesma. Por preguiça, por desistência, por fraqueza. Apenas um instante que parece destruir toda aquela caminhada organizada. O Pior de Mim também parece ativar uma força sobrehumana, um desejo profundo de destruição criativa. Muitas vezes o que me motiva a dançar é a raiva, o desgosto, a angústia. Mas saio dessa dança com o mais puro sentimento de amor e paz. Nesse sentido, o pior de mim possibilita o meu melhor. O pior de mim aparece em situações extremas, mas na maioria das vezes aparece em doses homeopáticas do meu dia a dia. O pior de mim são meus hábitos mais arraigados, aqueles que nem sei mais porque os inventei. O pior de mim vai acontecendo, eu vou percebendo, e não faço nada para mudar a condição do ruim em mim. O pior de mim eu sei, e nada faço para ir contra. Me defino e me reconheço enquanto eu na maioria das vezes pelo meu pior. Mas de onde eu julgo o meu pior? É o Outro, que me olha e do qual só sei ser através desse Outro, que só existe por que eu sou. O Pior de Mim é quando não consigo sair de um pensamento sobre mim.
Tem tanto de pior em mim... como vc me aguenta, amiga?
Love you!
Monica
terça-feira, 1 de dezembro de 2015
O título O Pior de Mim tem suscitado uma série de conversas animadas com amigos próximos a respeito do que implica o “pior de cada um”. Desdobramentos do tema trazem a tona noções como o duplo, a ausência, o excesso, o “melhor de cada um” e muitos outros temas. Por isso estou pedindo para alguns de meus interlocutores para escrever um pequeno texto a partir de nossas conversas. O ponto de partida é meu projeto, mas as reflexões seguem rumos próprios...
O primeiro texto foi escrito pelo meu querido amigo mega culto Josimar Ferreira!!
Diante de mim: o outro, o duplo
“[...] existe um outro por ai que me persegue,
existe por ai uma semelhança de mim que difere de mim”
[Dostoiéviski, citado por Raul Antelo]
O duplo, o outro de nós, igual e simétrico, potencialmente destrutivo. Vários escritores o visitaram, Goethe e Poe, Kafka e Dostoiéviski, Stevenson e Musset, [para não criar uma lista infinita e impossível]. Sugerido ou estimulado pelos espelhos, pelas águas e pelos irmãos gêmeos, o conceito do duplo condiz com a sua denominação: são dois seres ou duas imagens de si mesmo. Ele tanto revela quanto amedronta quem com ele se depara, e por esse motivo surgiu em distintas construções imagéticas, desde Narciso e Pigmaleão na mitologia. Pela repetição dessa temática ao longo dos séculos, o homem demonstra a necessidade de conhecer a si mesmo intimamente, e o tema da duplicidade nos assola como uma sombra que está camuflada sob cada máscara e cada ser.
O tema do outro em Borges presentifica-se em seus contos e poemas, assim como também em seus ensaios filosóficos, e é perceptível, por exemplo, em O livro dos seres imaginários [1] , onde aborda a presença do duplo na literatura ocidental: em William Wilson, de Edgar Allan Poe, o duplo é a consciência do herói, atingida somente quando este assassina o outro, e acaba ele próprio morrendo; na poesia de Yeats, o duplo é [o] anverso, [o] contrário, aquele que [...] completa, aquele que não [é]. É de se notar que Borges, ao incluir o duplo em O livro dos seres imaginários, considera-o como um ser, tão imaginário quanto, por exemplo, a fênix, a esfinge, as fadas, o minotauro.
Consciente de seu tempo, bem como da cultura ocidental como um todo, Borges levou ao extremo a questão da alteridade, ou da multiplicidade, em relação ao eu, pois quando se é outro já se é múltiplo de um, e mais de um é qualquer possibilidade numérica, tendendo ao infinito. No conto O outro [2], Borges ficcionaliza um fato ocorrido em um banco com vista para o rio Charles, norte de Boston, Cambridge. O rio lhe traz a herança de Heráclito, e faz com que pense imediatamente no tempo. Trata-se do encontro entre o narrador [eu-Borges] e um jovem [outro-Borges]. O eu-Borges, narrador do conto, vive três tempos: parte de seu presente – futuro em relação ao tempo da narrativa – e retorna ao passado, momento do enunciado, a partir de quando retorna ainda a um passado mais remoto, o tempo em que o outro-Borges tem como presente. O eu-Borges afirma que se trata de dois espaços e dois tempos, ao propor ao seu interlocutor um novo encontro no dia seguinte no mesmo banco que está em dois tempos e em dois lugares. Já o outro-Borges discorda, e diz que está em Genebra, num banco, a alguns passos do Ródano. Diz o eu-Borges: O encontro foi real, mas o outro conversou comigo num sonho e por isso pôde me esquecer; eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta. O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. O outro-Borges coincidentemente lê O duplo3 de Dostoiéviski, naquele mesmo banco, livro que o eu-Borges já havia lido no passado.
Dostoiévski, em sua novela O duplo, procura manter em seu leitor a dúvida quanto à natureza do duplo [do sósia], intercalando momentos em que este é apenas fruto da alucinação do personagem principal com passagens em que o duplo parece ser real, fazendo com que o herói da novela confronte-se com suas impossibilidades, seu insuportável, seu subterrâneo. O personagem assim que se sente familiarizado com seu duplo, confessando a ele suas intimidades, e é tomado por uma enorme felicidade e um sentimento de segurança. Mas logo, este sentimento é substituído por uma insegurança e uma fraqueza diante daquele que se havia tornado seu maior rival, o usurpador de suas funções e o responsável por seu declínio social. Uma série extensa de sentimentos contraditórios permeiam o universo atormentado a ponto de surpreendê-lo com suas próprias atitudes e fazê-lo reconhecer-se como seu amigo e inimigo ao mesmo tempo. Essa ambiguidade torna possível encontrar, na ideia do duplo, uma das discussões centrais, não apenas em Dostoiévski, mas na literatura ocidental: a presença das sombras.
A questão do fantasma é central diante do duplo, um conceito espectral. Não é uma confiança na razão, mas no fantasma. Entre a memória, o sonho e a ficção o importante não é o que vivemos, mas o tecido de nossa rememoração, nossa fabulação. O trabalho de Penélope da reminiscência se aproxima ao do esquecimento, pois a recordação é a trama, e o esquecimento a urdidura. O esquecimento tece para nós a cada manhã as franjas na tapeçaria da existência vivida, é o dia que desfaz o trabalho da noite, onde o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais, e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente. Em Dostoiéviski, vestígio da semelhança assombra suas páginas. Em Borges, o personagem-narrador continuará sonhando seu duplo, até que o sonhado um dia desperte. O discernimento prolifera os fantasmas, e na cena contemporânea circula a sombra, circula a imagem, circula o outro de mim.
* Josimar é pesquisador, mestre em Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina, na linha de pesquisa em Teoria e História da Arte.
[1] BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginários. Companhia das Letras, São Paulo, 2008.
[2] BORGES, Jorge Luis. O duplo. In: O livro de areia. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.
[3] DOSTOIÉVISKI, Fiódor. O duplo. Editora 34, São Paulo, 2013.
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