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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

O título O Pior de Mim tem suscitado uma série de conversas animadas com amigos próximos a respeito do que implica o “pior de cada um”. Desdobramentos do tema trazem a tona noções como o duplo, a ausência, o excesso, o “melhor de cada um” e muitos outros temas. Por isso estou pedindo para alguns de meus interlocutores para escrever um pequeno texto a partir de nossas conversas. O ponto de partida é meu projeto, mas as reflexões seguem rumos próprios...

O primeiro texto foi escrito pelo meu querido amigo mega culto Josimar Ferreira!!



 Diante de mim: o outro, o duplo



“[...] existe um outro por ai que me persegue,
existe por ai uma semelhança de mim que difere de mim”

[Dostoiéviski, citado por Raul Antelo]



O duplo, o outro de nós, igual e simétrico, potencialmente destrutivo. Vários escritores o visitaram, Goethe e Poe, Kafka e Dostoiéviski, Stevenson e Musset, [para não criar uma lista infinita e impossível]. Sugerido ou estimulado pelos espelhos, pelas águas e pelos irmãos gêmeos, o conceito do duplo condiz com a sua denominação: são dois seres ou duas imagens de si mesmo. Ele tanto revela quanto amedronta quem com ele se depara, e por esse motivo surgiu em distintas construções imagéticas, desde Narciso e Pigmaleão na mitologia. Pela repetição dessa temática ao longo dos séculos, o homem demonstra a necessidade de conhecer a si mesmo intimamente, e o tema da duplicidade nos assola como uma sombra que está camuflada sob cada máscara e cada ser.

O tema do outro em Borges presentifica-se em seus contos e poemas, assim como também em seus ensaios filosóficos, e é perceptível, por exemplo, em O livro dos seres imaginários [1] , onde aborda a presença do duplo na literatura ocidental: em William Wilson, de Edgar Allan Poe, o duplo é a consciência do herói, atingida somente quando este assassina o outro, e acaba ele próprio morrendo; na poesia de Yeats, o duplo é [o] anverso, [o] contrário, aquele que [...] completa, aquele que não [é]. É de se notar que Borges, ao incluir o duplo em O livro dos seres imaginários, considera-o como um ser, tão imaginário quanto, por exemplo, a fênix, a esfinge, as fadas, o minotauro.

Consciente de seu tempo, bem como da cultura ocidental como um todo, Borges levou ao extremo a questão da alteridade, ou da multiplicidade, em relação ao eu, pois quando se é outro já se é múltiplo de um, e mais de um é qualquer possibilidade numérica, tendendo ao infinito. No conto O outro [2], Borges ficcionaliza um fato ocorrido em um banco com vista para o rio Charles, norte de Boston, Cambridge. O rio lhe traz a herança de Heráclito, e faz com que pense imediatamente no tempo. Trata-se do encontro entre o narrador [eu-Borges] e um jovem [outro-Borges]. O eu-Borges, narrador do conto, vive três tempos: parte de seu presente – futuro em relação ao tempo da narrativa – e retorna ao passado, momento do enunciado, a partir de quando retorna ainda a um passado mais remoto, o tempo em que o outro-Borges tem como presente. O eu-Borges afirma que se trata de dois espaços e dois tempos, ao propor ao seu interlocutor um novo encontro no dia seguinte no mesmo banco que está em dois tempos e em dois lugares. Já o outro-Borges discorda, e diz que está em Genebra, num banco, a alguns passos do Ródano. Diz o eu-Borges: O encontro foi real, mas o outro conversou comigo num sonho e por isso pôde me esquecer; eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta. O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. O outro-Borges coincidentemente lê O duplo3 de Dostoiéviski, naquele mesmo banco, livro que o eu-Borges já havia lido no passado.

Dostoiévski, em sua novela O duplo, procura manter em seu leitor a dúvida quanto à natureza do duplo [do sósia], intercalando momentos em que este é apenas fruto da alucinação do personagem principal com passagens em que o duplo parece ser real, fazendo com que o herói da novela confronte-se com suas impossibilidades, seu insuportável, seu subterrâneo. O personagem assim que se sente familiarizado com seu duplo, confessando a ele suas intimidades, e é tomado por uma enorme felicidade e um sentimento de segurança. Mas logo, este sentimento é substituído por uma insegurança e uma fraqueza diante daquele que se havia tornado seu maior rival, o usurpador de suas funções e o responsável por seu declínio social. Uma série extensa de sentimentos contraditórios permeiam o universo atormentado a ponto de surpreendê-lo com suas próprias atitudes e fazê-lo reconhecer-se como seu amigo e inimigo ao mesmo tempo. Essa ambiguidade torna possível encontrar, na ideia do duplo, uma das discussões centrais, não apenas em Dostoiévski, mas na literatura ocidental: a presença das sombras.

A questão do fantasma é central diante do duplo, um conceito espectral. Não é uma confiança na razão, mas no fantasma. Entre a memória, o sonho e a ficção o importante não é o que vivemos, mas o tecido de nossa rememoração, nossa fabulação. O trabalho de Penélope da reminiscência se aproxima ao do esquecimento, pois a recordação é a trama, e o esquecimento a urdidura. O esquecimento tece para nós a cada manhã as franjas na tapeçaria da existência vivida, é o dia que desfaz o trabalho da noite, onde o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais, e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente. Em Dostoiéviski, vestígio da semelhança assombra suas páginas. Em Borges, o personagem-narrador continuará sonhando seu duplo, até que o sonhado um dia desperte. O discernimento prolifera os fantasmas, e na cena contemporânea circula a sombra, circula a imagem, circula o outro de mim.

* Josimar é pesquisador, mestre em Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina, na linha de pesquisa em Teoria e História da Arte.


[1] BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginários. Companhia das Letras, São Paulo, 2008.
[2] BORGES, Jorge Luis. O duplo. In: O livro de areia. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.
[3] DOSTOIÉVISKI, Fiódor. O duplo. Editora 34, São Paulo, 2013.