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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016


Sobre a ausência

 

* por Erica Fiod


   A ausência é aquilo que prontamente me falta: a presença de alguém, a presença de mim mesma, a falta de um olhar destro e calma perante o mundo, o alívio, o amor, a comunhão, a alegria.

   A ausência do que me falta no peito é a minha profunda solidão. É o estar só em meio de tantas multidões. É o não querer abrir a janela e fitar o sol, o mundo, os olhos de outrem. A ausência é saudade. Saudade do que passou, saudade do que nunca vivi, saudade do que nunca viverei - minhas conjecturas e projeções. Sou uma estrangeira em terra de língua nativa.

   Como diz Camille Claudel: “Há sempre uma ausência em mim”.

   Há sempre uma saudade, um buraco, um vazio que não me é preenchido por nada nem ninguém. Essa saudade que não sai de meu corpo, de meus olhos, de minha pele, de minhas mãos é esse buraco de que jorra a minha fonte escondida e me faz buscar pelo que me falta e que não sei nomear, não sei colocar em palavras toda essa ausência. Do que sinto falta? Do outro? De mim? Da euforia? Talvez seja da necessidade de, dentre outras coisas, entrar em contato comigo mesma, de humanidade, de transumanização.

   Tem dias que consigo romper a barreira e abrir minha janela, preencher me do mundo, então, em dias assim, sorrio. Sou única, singular. Tenho minhas fraquezas e talvez o que eu chame de minhas fraquezas, seja, aos olhos dos outros, aquilo que  realmente  me faz valer a pena.

   O que realmente me comove é, de fato, a maneira de me tirar do estado de ensimesmada e de colocar o meu eu no centro de mim mesma. Penso que a alegria seja a forma de romper a solidão, e entrar em contato verdadeiro com o outro. A alegria e a dor provêm da mesma fonte. Não se sabe onde termina uma e se inicia a outra. E não adianta se procurar pela alegria, pela felicidade. Sentimo-nos felizes quando não estamos preocupados em sê-lo. Como diz Guimarães Rosa: “Felicidade se acha em horinhas de descuido.”

   E a cada nova alegria, eu reafirmo a vida. Sim! Porque ao reafirmar a vida, eu lhe faço um convite que é quase uma súplica: desperte em mim o meu melhor, os meus melhores sentimentos. Aceite o meu convite Apesar da dor, da sua e da minha, apesar da noite insone e da árdua luta contra nossos próprios demônios, apesar dos olhares de repúdio sobre mim, coloquemo-nos no centro da fogueira e... vamos dançar?

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016


Sobre as perdas

* por Barbara Biscaro


Quando formamos na mente a imagem de um desejo se realizando, quase sempre a concretizamos com um ganhar algo, nunca perder. O imaginário das perdas, associado geralmente com a morte e a tristeza, povoa os medos de tod@s nós: perder a saúde, o dinheiro, as pessoas amadas, os lugares, o status, o poder. Como se a adição fosse necessariamente uma operação feliz e a subtração aquela conta adiada, que desejamos fazer apenas na morte, quando a perda de si se torna inevitável.

O raciocínio pelas perdas tem me fascinado. Porque perder algo significa ganhar espaço para o desconhecido. Quando eu quero algo por adição, é como abrir o pacote do presente já sabendo o que é, um processo de confirmação que leva ao tédio da criança que fez a lista para o Papai Noel e confirma os itens, como um pequenino burocrata da felicidade. Quando eu quero algo por subtração, é como abrir uma porta na direção do escuro e se surpreender com algo que eu nunca suspeitaria que pudesse ser meu (ou com algo que eu nunca imaginaria que eu até mesmo desejasse). Tocar na maçaneta desta porta, experimentar o frisson da completa ignorância e sentir o sangue ferver em um momento inevitavelmente presente é uma coragem rara.

É muito difícil nos permitimos essa matemática: porque fugimos das equações do fracasso sem entender que elas são tão abstratas quanto aquelas do suposto sucesso. A separação do mundo por dualidades e opostos é confortável, mas ineficaz. Fracasso sendo o oposto de sucesso, o pior sendo o oposto do melhor? O desafio deste pensamento dual e excludente é uma das raízes de um projeto como O Pior de Mim, de Monica Siedler. Há meses conversando e dançando intensamente, uma das ideias mais lindas que Monica plantou em minha percepção, com sua pesquisa, é aquela de que geralmente o que temos de melhor é exatamente nosso pior. Sem opostos, sem exclusão. A velha história das doses que curam e envenenam igualmente. Não somos uma coisa ou outra. Somos tudo ao mesmo tempo, em intensidades diferentes; o que em uma situação pode ser um trunfo (como ser extremamente organizado no trabalho, por exemplo) pode ser seu inferno pessoal (não conseguir sobreviver em um mundo caótico).

O pior, então, não é avesso, nem somente sombra. O pior é aquilo que fascina porque é impossível não se identificar. Talvez tenhamos vivido muito tempo em um mundo em que uma suposta ideia de perfeição e higiene tenha obscurecido a percepção da humanidade que mora em nossas carnes, vísceras, pensamentos confusos, medos profundos. Quando Monica se propõe começar pelo fracasso e pela frustração de expectativas como tônica de um percurso artístico, ela não está definitivamente buscando uma forma ou um formato específico. É uma jornada, uma marcha em direção ao desconhecido que, se aprisionada em uma estética única, trairia toda a força que o ponto de partida proporciona. Não se trata de chafurdar na lama e depois embalar o bolinho de terra em uma caixinha bonitinha, tornando-o palatável para o mundo; trata-se de servir o inservível, apostando que tal honestidade seja mil vezes melhor.

A extrema coragem e beleza de alguém que se afunda neste processo é o que todos os dias eu tenho o privilégio de assistir em sala de trabalho. Uma mulher, que aceitando suas perdas e seus fracassos, está refazendo literalmente seus ossos em busca de uma dureza que tem a ver com estrutura e não rigidez. A antroposofia assinala os trinta anos com a fase do corpo em que os ossos adquirem a consistência final, tão necessária para encarar os trancos da vida adulta; nossos corpos buscam a rigidez do osso para potencializar a ação no mundo com estrutura, com consciência. Para mim é o que Monica faz todos os dias: refaz seus ossos, ganha os dentes em uma mordida precisa. Qualquer artista solo que avança na sua segunda década de trabalhos autorais e de pesquisa em dança e continua com rigor e determinação, sem esmorecer, para mim, é um sinal ou de uma resistência fascinante ou de uma teimosia sem fim – nosso melhor e pior. Fazer emergir a sombra como tudo o que é possível ser e descobrir que está tudo bem; abrir a maldita porta ao desconhecido, olhar nos olhos de tudo o que o mundo chamou de fracasso e dançá-lo como quem comemora a perda com uma grande festa: eis o que pode ser o pior de mim.