Sobre as perdas
* por Barbara Biscaro
Quando formamos na mente a imagem de um desejo se realizando, quase sempre a concretizamos com um ganhar algo, nunca perder. O imaginário das perdas, associado geralmente com a morte e a tristeza, povoa os medos de tod@s nós: perder a saúde, o dinheiro, as pessoas amadas, os lugares, o status, o poder. Como se a adição fosse necessariamente uma operação feliz e a subtração aquela conta adiada, que desejamos fazer apenas na morte, quando a perda de si se torna inevitável.
O raciocínio pelas perdas tem me fascinado. Porque perder algo significa ganhar espaço para o desconhecido. Quando eu quero algo por adição, é como abrir o pacote do presente já sabendo o que é, um processo de confirmação que leva ao tédio da criança que fez a lista para o Papai Noel e confirma os itens, como um pequenino burocrata da felicidade. Quando eu quero algo por subtração, é como abrir uma porta na direção do escuro e se surpreender com algo que eu nunca suspeitaria que pudesse ser meu (ou com algo que eu nunca imaginaria que eu até mesmo desejasse). Tocar na maçaneta desta porta, experimentar o frisson da completa ignorância e sentir o sangue ferver em um momento inevitavelmente presente é uma coragem rara.
É muito difícil nos permitimos essa matemática: porque fugimos das equações do fracasso sem entender que elas são tão abstratas quanto aquelas do suposto sucesso. A separação do mundo por dualidades e opostos é confortável, mas ineficaz. Fracasso sendo o oposto de sucesso, o pior sendo o oposto do melhor? O desafio deste pensamento dual e excludente é uma das raízes de um projeto como O Pior de Mim, de Monica Siedler. Há meses conversando e dançando intensamente, uma das ideias mais lindas que Monica plantou em minha percepção, com sua pesquisa, é aquela de que geralmente o que temos de melhor é exatamente nosso pior. Sem opostos, sem exclusão. A velha história das doses que curam e envenenam igualmente. Não somos uma coisa ou outra. Somos tudo ao mesmo tempo, em intensidades diferentes; o que em uma situação pode ser um trunfo (como ser extremamente organizado no trabalho, por exemplo) pode ser seu inferno pessoal (não conseguir sobreviver em um mundo caótico).
O pior, então, não é avesso, nem somente sombra. O pior é aquilo que fascina porque é impossível não se identificar. Talvez tenhamos vivido muito tempo em um mundo em que uma suposta ideia de perfeição e higiene tenha obscurecido a percepção da humanidade que mora em nossas carnes, vísceras, pensamentos confusos, medos profundos. Quando Monica se propõe começar pelo fracasso e pela frustração de expectativas como tônica de um percurso artístico, ela não está definitivamente buscando uma forma ou um formato específico. É uma jornada, uma marcha em direção ao desconhecido que, se aprisionada em uma estética única, trairia toda a força que o ponto de partida proporciona. Não se trata de chafurdar na lama e depois embalar o bolinho de terra em uma caixinha bonitinha, tornando-o palatável para o mundo; trata-se de servir o inservível, apostando que tal honestidade seja mil vezes melhor.
A extrema coragem e beleza de alguém que se afunda neste processo é o que todos os dias eu tenho o privilégio de assistir em sala de trabalho. Uma mulher, que aceitando suas perdas e seus fracassos, está refazendo literalmente seus ossos em busca de uma dureza que tem a ver com estrutura e não rigidez. A antroposofia assinala os trinta anos com a fase do corpo em que os ossos adquirem a consistência final, tão necessária para encarar os trancos da vida adulta; nossos corpos buscam a rigidez do osso para potencializar a ação no mundo com estrutura, com consciência. Para mim é o que Monica faz todos os dias: refaz seus ossos, ganha os dentes em uma mordida precisa. Qualquer artista solo que avança na sua segunda década de trabalhos autorais e de pesquisa em dança e continua com rigor e determinação, sem esmorecer, para mim, é um sinal ou de uma resistência fascinante ou de uma teimosia sem fim – nosso melhor e pior. Fazer emergir a sombra como tudo o que é possível ser e descobrir que está tudo bem; abrir a maldita porta ao desconhecido, olhar nos olhos de tudo o que o mundo chamou de fracasso e dançá-lo como quem comemora a perda com uma grande festa: eis o que pode ser o pior de mim.