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segunda-feira, 7 de março de 2016


O Pior de mim


por Flávio Dias*


Memória é sempre rascunho. E qualquer tentativa de passa-la a limpo é condenada já desde o principio ao fracasso. Díspares mais ainda buscar recapitular as paginas arrancadas. Se o processo de qualquer lembrança é reconstrução, as doloridas são teias de uma rede afiada onde algum mamífero marinho se debate assustado. Não há cura e nem cor para o pior nas recordações. O tempo delas é sempre presente, o único, o real. Vivo de novo o pior de mim cada vez como uma fita cassete VHS se infiltrando nas telas de alta e triste definição cotidiana. O pior de mim transpira com mãos que são luvas de dedos demasiado longos procurando trechos de textos escondidos nas contracapas dos cadernos de minhas irmãs. Um tapa perdido no meu filho é capturado por essa câmera sonâmbula e sem sorrisos. O pior de mim não se cansa como eu me canso depois de dias duros de trabalho e nem soluça arrependido. Se a verdade está na ficção, o pior de mim é dolorosamente real e sem sede, magro de maldades e infinitamente infiel ao desejo. O pior de mim é uma terça-feira suja de ignorar um amigo e o corte é brusco no plano seqüência. As frases são feitas como numa fábrica e o pior de mim tem uma navalha enferrujada na sola de cada pé de não ajudar alguém. Suicidar o amor numa fotografia 3x4 sem sorriso rasgada. Estranho como escrevendo essas linhas vejo que o pior de mim adora ser visto, mas não quer ser lembrado. Como um leão arrasando quarteirões pelo prazer da juba, pelo ego imenso e perverso desmoronando mosaicos, desencaixando os livros, desmontando os quebra-cabeças. O pior de mim abandona as vezes meu filho por namoradas, pela expectativa de um gozo que é coroa de espinhos. “Tudo um engano”, o pior de mim tenta me dizer em reverência endiabrada. “Nada é culpa tua”, o pior de mim me acaricia os cabelos ainda com sangue. Uma carícia metamorfoseando-se em dor como num plágio de um vinil arranhado. Eu traio as pessoas e respondo que fumo, ou não, dependendo do efeito que quero ter no meu interlocutor. Eu sinto saudade incandescente de meu país, das minhas ruas e penso que isso me autoriza certos caprichos feios de menino mimado. Eu sempre quero uma segunda chance, embora poucas vezes queira dá-la. Penso no meu sexo encontrando outro sexo e sou um terceiro elemento longínquo vislumbrando um quarto elemento ainda mais distante. E o pior de mim ainda quer ter seu charme e buscar esperança. O torpor do pior de mim as vezes me pega desprevenido e não tem tristeza. A tristeza, quando vem, é a face boa do pior de mim. E é ela a esperança renovada.



*Professor. Compositor - letrista. Cinéfilo. Brasileiro tecendo pontes entre o Lago Léman e o vento mais sul do sul do Brasil. Escritor. Impostor. Binômio do grupo helvético-brasileiro Prosa Poética.