Sobre ilhas: limiares entre Morel e Desterro
* por Josimar Ferreira
“Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem.”
Gilles Deleuze
Depois da sombra, antes da sombra. Uma ilha separada de todas as realidades da terra firme é o lugar ideal para construir realidades imaginárias. Talvez, seja, por isso que Bioy Casares escolheu uma ilha para inventar seu mundo com imagens fac-similares, projetadas pela máquina de Morel, em um lugar possivelmente assombrado e encantado, povoado por fantasmas. Um território onde estamos diante de um passado insondável, repetido pela eternidade:
Os dois sóis e as duas luas: como a semana se repete ao longo do ano, vêem-se esses sóis e luas não coincidentes (e também os moradores com o frio em dias de calor; tomando banho em águas sujas; dançando no meio do mato ou sob o temporal). Se a ilha se afundasse - à exceção dos lugares em que estão as máquinas e os projetores -, as imagens, o museu, a própria ilha seguiriam visíveis. (1)
Ainda vejo minha imagem em companhia de Faustine. Esqueço que é uma intrusa; um espectador desprevenido poderia julgá-las igualmente apaixonadas e próximas uma da outra. Talvez, este parecer exija a debilidade dos meus olhos. [...] Minha imagem não passou, ainda, para a imagem; caso contrário, eu já teria morrido, teria deixado (talvez) de ver Faustine, para estar com ela numa visão que ninguém recolherá. (2)
Se histórias antigas são fábulas para se contar antes do anoitecer, então, os personagens de Morel parecem fazer parte dessas histórias com rastros de fantasmas. Didi-Huberman salienta que os personagens de contos de fadas, assim como os fantasmas sempre manifestam certa propensão para a melancolia: nunca chegam a morrer. Seres de sobrevivência, vagueiam como dibuks (alma penada) por algum lugar entre um saber imemorial das coisas passadas e uma trágica profecia das coisas futuras. (3) Sendo assim, a vida fantasmática das imagens constituem tanto nosso presente quanto nossa memória, tanto nosso imaginário quanto o lugar que vivemos (uma ilha desterrada).
Os dois sóis e as duas luas: como a semana se repete ao longo do ano, vêem-se esses sóis e luas não coincidentes (e também os moradores com o frio em dias de calor; tomando banho em águas sujas; dançando no meio do mato ou sob o temporal). Se a ilha se afundasse - à exceção dos lugares em que estão as máquinas e os projetores -, as imagens, o museu, a própria ilha seguiriam visíveis. (1)
Ainda vejo minha imagem em companhia de Faustine. Esqueço que é uma intrusa; um espectador desprevenido poderia julgá-las igualmente apaixonadas e próximas uma da outra. Talvez, este parecer exija a debilidade dos meus olhos. [...] Minha imagem não passou, ainda, para a imagem; caso contrário, eu já teria morrido, teria deixado (talvez) de ver Faustine, para estar com ela numa visão que ninguém recolherá. (2)
Se histórias antigas são fábulas para se contar antes do anoitecer, então, os personagens de Morel parecem fazer parte dessas histórias com rastros de fantasmas. Didi-Huberman salienta que os personagens de contos de fadas, assim como os fantasmas sempre manifestam certa propensão para a melancolia: nunca chegam a morrer. Seres de sobrevivência, vagueiam como dibuks (alma penada) por algum lugar entre um saber imemorial das coisas passadas e uma trágica profecia das coisas futuras. (3) Sendo assim, a vida fantasmática das imagens constituem tanto nosso presente quanto nossa memória, tanto nosso imaginário quanto o lugar que vivemos (uma ilha desterrada).
As sombras em Morel se aproximam ao tempo do sonho, onde por algum momento o tempo para de operar, mas nesse exato momento diferentes temporalidades se bifurcam e os fantasmas irrompem na cena. Sombras do nosso passado mais profundo podem nos afetar de forma arrebatadora, mostrando nosso pior, enaltecendo nosso melhor. Aquilo que experimentamos a cada dia como imagens que nos rodeiam aparenta ser uma combinação de coisas novas, e sobrevivências vindas de muito longe de nossas próprias histórias ou de histórias da humanidade. Considerando que diante da imagem, estamos diante do tempo, e sendo o tempo movediço, podemos arriscar que os sonhos, são parte da vigília, ou como preferem os poetas e artistas, de forma esplêndida: que toda vigília é um sonho.
O mar cerca a ilha de Morel, um lugar ficcional. Cerca também a ilha do Desterro, nosso lugar de morada. Cerca muitas outras ilhas lendárias e imaginárias, lugares povoados por sombras e fantasmas. Borges nos conta que quando Samuel Coleridge viajou à Alemanha se deu conta de que nunca tinha visto o mar, apesar de tê-lo descrito admiravelmente, inesquecivelmente, em seu poema “The Ancient Mariner”. (4) Mas o mar não impressionou o escritor inglês, o mar de sua imaginação era mais vasto que o mar da realidade. Vivendo em uma ilha, estaríamos cercados pelo mar de águas turvas, ou pelo mar de águas do imaginário? Os fantasmas de uma ilha imaginária/ficcional não poderiam ser os mesmos fantasmas que assombram uma ilha com sólida localização geográfica? A ilha, assim como a noite, seria, então, o lugar dos fantasmas? O lugar das sombras duplicadas?
Morel poderia ser Desterro.
(1) BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 117.
(2) BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 124.
(3) DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 427.
(4) BORGES, Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 189.