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terça-feira, 28 de junho de 2016



 * por Vitor Chucre, estudante de filosofia


A vida pode ser linda, feia ou sem sentido, e toda situação pode trazer a tona nossas piores partes, e percebemos  que quando o ser humano cria fantasias de uma vida melhor, é apenas por que precisa desesperadamente compreender e aceitar sua existência tal qual é no planeta e essa é uma forma de lidar com as piores coisas que a vida nos apresenta. Temos uma necessidade constante de entender como o universo funciona, seus processos e leis, pois o que nos perguntamos o tempo todo é: Como e por que estamos aqui?  Qual valor eu tenho? Será que existe escolha? Minha vida está tal qual deveria? Existe alguma coisa que eu realmente tenho controle? Minha existência é justificável ou até que ponto meu lugar é tolerável, aceitável ou concebível? Pensar em tudo isso é um movimento na luta pelo nosso direito a identidade e subjetividade,  que temos que garantir a todo momento num exercício de justificar nossa presença no espaço ou nosso acesso aos recursos.

Essa agonia por saber de onde viemos e para onde vamos, é consequência da nossa eterna prisão: A consciência. Note-se  que essa é a prisão perfeita pois ela não está fora, e não limita nossas ações de forma externa. Carregamos a consciência conosco e em qualquer lugar precisamos pensar uma maneira de satisfazê-la respondendo por que e como estamos aqui e até que ponto temos controle do que pensar, viver, sentir, cair, doer, ou ser bem sucedido, alcançar objetivos ou viver numa eterna dança entre azar e sorte. Tudo isso por que simplesmente sabemos que existimos. O ser humano é uma das poucas espécies que tem noção de sua existência e, portanto da existência dos seus pares, o que nos dá a capacidade pensar universos, pois se eu tenho um mundo só meu e inúmeras formas de interpretar silêncios e sons, luzes e sombras e ações ou repousos, imagino que meus pares também tem. Essa relação complexa entre todos esses possíveis universos particulares cria uma realidade social em que o tempo todo eu preciso lutar pela minha existência, em um primeiro momento ao reconhecê-la, aceita-la  e defendê-la pra mim mesmo pra num segundo momento trabalha  para que o mundo também o faça.

Dentro do processo de pensar tudo isso recebi o convite de assistir ao espetáculo “O Pior de Mim” de Monica Siedler, achei o espetáculo genial, por que apesar de estar até um pouco indisposto no inicio da apresentação essa indisposição passou quando os movimentos de dança começaram. A proposta de usar uma vivencia corporal de reconhecimento da existência do corpo com o aqui-agora, o controle do corpo numa percepção da existência, suas ações e reações respondendo ao efêmero e irreproduzível mas mantendo uma pré concepção de si remeteu a todo esse processo interno de aceitação da dor e do descontrole, da falta de capacidade de parar o tempo e os fatores externos, onde o corpo precisa reagir a tudo e se preparar para qualquer movimento ou risco que pode ser necessário a garantia da sobrevivência.

Suas expressões faciais remetiam a essa tentativa de controle, um modelo de percepção do sujeito social expressando essa percepção, como se as expressões duras e até agressivas em um rosto delicado, com traços angelicais que remetem a uma boneca de porcelana, uma coisa frágil mas que naquele momento precisa projetar uma força que garanta o respeito ao corpo, pois o rosto, numa perspectiva social, garante nossa identidade, como uma impressão digital da alma. Nesse espetáculo é possível perceber que o rosto dança as vezes até mais que o corpo, e a performer deixa isso muito claro no momento que esconde o rosto pra dar força a expressão corporal ,num movimento, tanto de retirar a delicadeza dos traços da bailarina como de mostrar a força que um corpo sem rosto tem ou não.

Esse balé tem claramente influencias da rua e obviamente se inspira na força projetada pelos seres frágeis que perderam sua capacidade de imprimir seus rostos na memória social. As moradoras de rua vivem esse eterno conflito de, sendo extremamente frágeis e vulneráveis, estarem o tempo todo projetando uma força surpreendente e às vezes até assustadora. no inicio da performance, a bailarina pode ser confundida com uma “mendiga” louca carregando seu saco de materiais recolhidos na rua.  No auge da apresentação se percebe que esse trabalho vai além das expectativas e uma breve conversa com Monica nos mostra que até pra ela.

Por ser uma concepção baseada no efêmero, é perceptível que a contemporaneidade e o mundo líquido de Bauman se traduzem em dança num espetáculo que consegue realmente fazer o espectador refletir sobre o pior de si, pois este vive no presente. Temos uma tendência de colocar o nosso melhor em um passado nostálgico ou projetá-lo em um futuro glorioso e as expressões de agonia, dor e sofrimento da dançarina nos trazem pro agora, pois é onde essas sensações ficam. Monica Siedler,  em sua performance consegue nos trazer o sentimento e a reflexão do incomodo, nos fazendo lembrar do papel crítico e até terapêutico da arte, que abraça o fracasso e assim alcança o sucesso.

sexta-feira, 6 de maio de 2016



Desenhos de Narjara Reis, publicados junto ao texto de Josimar Ferreira na revista de arte contemporânea Interartive!

http://interartive.org/2016/05/monica-siedler-pior-de-mim/













terça-feira, 26 de abril de 2016

Texto de Elke Siedler - publicado no clicrbs - sobre a estreia no MIS da performance O Pior de Mim:


O Pior de Mim é uma dança que transita por distintas mídias, em ambiências off-line e online. A idealizadora e executora do projeto, a performer Monica Siedler, desestabiliza as noções engessadas de fruição em artes do corpo ao propor uma experiência dilatada. Isto é, ela provoca o público ao se apresentar em diversas situações, e em distintas temporalidades, de modo que evoca interrogações sobre os limites  das relações entre corpo e obra de arte. 

Desde o início, Monica convidou artistas e público em geral para instaurar um campo de vivências e experiências voltadas às questões trabalhadas no projeto. Neste contexto, a dança foi materializada em vídeo-performances (postados no YouTube), fruto de sua parceria com Barbara Biscaro; há uma série de traduções criativas dos ensaios abertos, assinadas por espectadores e/ou especialistas nas áreas das artes e compartilhadas no blog do projeto; foram desenvolvidas performances urbanas em conjunto com os integrantes do workshop intensivo, proposto por Monica. 

No dia 20 de abril, o público lotou o Museu de Imagem e do Som (MIS), localizado nas dependências do Centro Integrado de Cultura (CIC), para ter uma experiência diferenciada. O Pior de Mim cresceu e foi materializado numa performance marginal compartilhada com o Dj Ledgroove, Vj Bruno Bez e o cenógrafo Roberto Gorgati.  Eu não posso descrever em detalhes esse solo de dança, pois não quero descaracterizá-lo, já que o devir é sua condição de existência. Cada apresentação é a enunciação da resultante provisória de encontros temporários com uma gama de artistas. Mas o denominador comum de todas as performances é a força, é a entropia, é a instabilidade instaurada no corpo e no ambiente.  
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Monica Siedler tem uma corporalidade de guerra. Seus gestos são agressivos, feito as errantes quando lutam pela sobrevivência nas ruas. Suas costas nuas denunciam que ela sobreviveu a um tiro nas costas. Suas vestes a protegem dos tempos difíceis. O vídeo-self feito em tempo real dá visibilidade aos contornos borrados de seu rosto que já chorou, e muito. A sombra do corpo é grande e contamina ao mesmo tempo em que é contaminada pelas imagens coloridas produzidas ao vivo e projetadas num telão em concordância com a música ácida, que provoca dor no corpo de quem a escuta. 

O Pior de Mim é sobre um corpo coletivo em ruínas, que está defronte aos fracassos de suas ações passadas...é um corpo em crise e arruinado pelos hábitos que um dia fizeram sentido. Não há respostas sobre os rumos a seguir, mas há pistas de que o melhor pode emergir do seu pior. As próximas apresentações serão no dia 25 de abril, às 20h, no Ceart, 29 e 30 de abril, às 20h, no Teatro da Armação e 12 de maio, às 22h15min, no bloco de Artes Cênicas UFSC. 

* Elke Siedler é bailarina independente e doutoranda em comunicação e semiótica

sábado, 23 de abril de 2016





Vem                                * por Mariana Coral





O pior de mim é um acionamento, algo que é disparado por outrem.. Fruto de uma simbiose que tornou-se vazia, um lugar de sombra e do côncavo. 



Pela estrada nos damos em fluxo “o melhor e o pior de mim”. Uma dança de comportamentos viciados. Esse vício não se constroí sozinho e sim, principalmente por aqueles que mascaram o pior de si. 



Hoje quero te ver dançar. Quero te mostrar os abismos que possuo. Gostaria de te dizer o quanto estais louca e quanto o teu pior de si, foi construido com o pior de mim. 



Coroada pelo crepúsculo, espero o clarão do dia. Quero dançar e estar nua.. Sei que não suportarás o dia e entrarás de novo em tua caverna. Te vejo, já, se relacionando com as sombras. Vem, vamos sair daqui lamber o asfato, se alimentar de Terra... até que teu ser frágil e enigmático.. possa de novo caminhar. 



domingo, 17 de abril de 2016




O PIOR DE MIM - andré felipe para monica siedler


Tem quem pense que eu tem quem pense que eu tem quem pense Todas nós aqui estamos tentando ser um pouco mais um pouco mais um quem pense que eu Ele nos disse mil vezes pra não voltar mas se ele tá quente nós já tá fervendo hoje é sábado a nossa vida é um sábado e se ele tá quente nós já tá trazendo mil litros desse líquido que nos enche por dentro porque nós tá com sede nós tá fervendo e nós disse mil vezes que esse líquido que nos enche por dentro esse líquido que nos acalma e nos faz mexer por dentro porque mesmo que ele diga mil vezes pra não voltar e ele disse mesmo que ele diga mil vezes e ele disse nós volta e mesmo que ele diga e ele ameaça assim mesmo a gente volta todas nós aqui e ele vê inclusive tem quem pense que eu tem quem pense que nós tem quem diga que a nossa vida é um sábado de madrugada Todas nós aqui estamos tentando ser um pouco mais um pouco menos aquilo que ele pensa que nós aquilo que eu mesma e todas nós pensa que nós deve ser assim mesmo nós volta nós tenta fugir bate a cara contra a parede de salpico e ele ameaça e mesmo assim nós volta e ele nos disse mil vezes pra não voltar mas se ele tá quente nós já tá fervendo mil litros desse líquido que nos acalma e nos faz mexer por dentro queima e se ele pensa que nós acaba nós continua voltando nós continua mexendo e tudo isso aqui é nossa homenagem pra ele - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ------------------------------------------------------------------------- - - Faz tempo que eu to querendo mostrar isso aqui mas eu não sabia como Faz tempo que eu tenho arrastado essa carga pesada dentro de mim mas não encontrava nenhuma outra sala que coubesse Faz tempo que essas coisas rondam o meu pensamento mas ninguém entenderia Faz tempo que todo mundo me olha mas não me entende Faz só duas horas que algumas coisas se clarearam mas não houve tempo Faz tempo eu estou tentando me abrir mas meu avesso também me esconde - - - - - - - - - - entra desvia toca desiste volta mas ninguém me ouve entrega eleva desvia bate desvia desliza esconde entrega recua contem solta expira abaixa desvia para encontra sobe desliza gira tenciona expira inspira torce agarra tenta treme aspira constrói recua solta balança entrega contem - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ------------------------------------------------------------------------- -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Um terreno baldio em um bairro antigo agora cercado de prédios a destruição ainda fresca de uma casa construída nos anos setenta por uma família que não valeria descrever aqui mas de gente que algum dia se importou com esse terreno de uma forma menos materialista e mais afetiva o recorte do telhado marcado no muro lateral os azulejos do antigo banheiro colados nos fundos o alicerce de ladrilho laranja afundado no mato crescido misturado aos entulhos despejados por operários da obra no outro lado da rua uma construção cada dia mais vertiginosa por sua altura uma velha cadeira de praia listrada dos tempos em que ainda era possível entrar no mar nesse lado o pé de carambola inabalável os mosquitos proliferando na água acumulada nas latas de tinta enferrujadas tudo é destruição e tudo é possibilidade - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - expira inspira expira inspira 1 2 3 expira inspira 1 2 3 expira inspira 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18192021vinteedois232425eninguémmeescuta2627282930 40 50 60 70 80 90 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - e nós continua voltando 1 2 3

quarta-feira, 13 de abril de 2016



- Espera I-


Entre Doroti’s e Penélope’s um passo a espreita, uma deseja acordar e retornar para a casa, o aconchego do lar, aquele espaço onde os pesadelos e aventuras estão protegidos pelo cheiro de café ao amanhecer, a cadeira no fundo da cozinha que a espera. A outra só quer que o seu amado retorne para a casa, o amor aventureiro, o homem que irá redimi-la do tamanho da espera, ela tece e refaz a paisagem da tapeçaria, organiza a casa, prepara o lar, dispensa os pretendentes e se coloca em tempo de “esperança”, seria a esperança uma espera? A passividade de Penélope ou o idealismo de Doroti? As mulheres que esperam seus amores retornarem da guerra, Godard certa vez colocou que só os homens fazem guerra, só um homem é capaz de subir em uma moto com uma mochila e atirar em seu vizinho. As mulheres seriam seres cordiais? Doroti deseja retornar para a casa, afinal, as aventuras não foram feitas para seres que “esperam”, ela é uma menina, ela está sonhando, meninas não são aventureiras, tudo não passará de um sonho e ela acordará em sua cama – protegida – de qualquer ameaça ou invasão. Já Penélope, uma mulher, a representante da figura do amor do herói, Ulisses retornará um dia à Ítaca não importa quanto tempo levará, Penélope jurou amor a quem precisou sacrificar sua vida em prol da Cidade, em viver grandes aventuras. E ela tece o que imagina dessas aventuras – um amor narcísico - encontra no outro o que “acha” que não está em si. Será o desejo de Penélope a espera? Será Ulisses o seu desejo de encontro? Ou, de repente, Penélope simplesmente é apaixonada pelo gesto de tecer? Tecer os seus caminhos, se Doroti em sonho passeia em suas desventuras pelas linhas tecidas por Penélope, um encontro entre elas nos resgataria da espera do amor, da espera do herói, talvez, das musas que habitam nosso hades sazonal:
- Doroti: Olá Penélope, você existe ou é só um sonho? Se o acontecimento for frustrante que seja só um sonho, acaso, você também poderá me dizer o que é a realidade?
- Penélope: Doroti, sua menina esperta, andou lendo Platão e inverteu seu desejo pelo assombro – a realidade - é uma cópia distanciada e por ora aproximativa do que vivemos. Você poderá acordar inúmeras vezes e talvez permaneça com a sensação de que ainda irá acordar. É uma espera o que nos constitui.
- Doroti: Porque uma espera? Porque precisamos ser seres de espera? Eu desejo aventuras, mas, insistem que tudo não passa de um sonho.
- Penélope: OOh Doroti, entendi, você quer brincar de fantasmas. Seria a espera um fantasma? Do que você tem medo? De atingir a intensidade? Será por isso que teço angústias e esboço dígrafos de alegria.

* Carolina Votto, outono de 2016

terça-feira, 12 de abril de 2016


domingo, 27 de março de 2016







     A proposta do curso é compartilhar procedimentos de criação experienciados para o projeto em dança O Pior de Mim, de Monica Siedler, artista que tem explorado nos últimos 10 anos intersecções entre teatro e dança e assumindo também o papel de interprete criadora. O objetivo é criar um ambiente de reflexão e troca entre as pessoas presentes acerca do universo poético desencadeado pela ideia “o pior de mim”. O projeto nasceu de uma série de exercícios para a criação da “persona” da performer, onde as características físicas, emocionais, e os modos como interage e é vista pelo ambiente que habita são evidenciados, exagerados e expostos enquanto fragilidade e potência de ação, numa tensão entre figuração e desfiguração, numa busca de estratégias que tornem possível a ressignificação de padrões comportamentais (físicos). 
     
     O projeto, patrocinado pelo prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à cultura/2014 tem gerado diversas formas e formatos de parcerias, como a escrita de textos, captação de imagens, desenhos, conversas, leituras e dança. Por isso o curso não propõe se fechar na pesquisa de movimento, mas se abrir para diferentes formas de se colocar diante e com o outro, assim como pensar em modos de compor dramaturgias para a cena e refletir sobre as implicações ético-estético que perpassam as escolhas e modos de composição em arte.


quando: dias 1, 2 e 3 de abril (sex, sáb e dom)
horário: das 18h as 22h
carga horária: 12h
local: Teatro Armação (praça XV, nº 344, centro)

gratuito e aberto para qualquer pessoa interessada em refletir sobre o pior de si.

para mais informações e inscrição:
monicasiedler@gmail.com

 Sobre Monica Siedler:

Atriz, performer, com graduação e mestrado em teatro pela UDESC. Faz parte da curadoria e organização do Vértice Brasil: encontro e festival ligado ao The Magdalena Project - rede internacional de mulheres artistas, realizando até o momento 4 edições (2008, 2010, 2012, 2014). Em São Paulo fez parte do Coletivo Rubroobsceno (2012/2015), realizando uma série de ações ligadas à temática de gênero e feminismo (mesas de estudo, performances, produção de workshop e mostra de cenas de mulheres). De 2008 a 2014 participou da ARCO Projetos em Arte, em parceria com o artista visual Roberto Freitas, onde pesquisaram a interação entre linguagem cênica e audiovisual. Por conta disso produziram a Trilogia Ninguém é Impossível, que integra as performances: Só Depois (Prêmio Funarte Klauss Vianna 2011); Somático (prêmio Elisabete Anderle de estímulo a Cultura -  SC/2010); 1A(UMA) (bolsa de pesquisa para intérprete-criador projeto Mergulho no Palco (2007, Florianópolis/SC).  Com a trilogia apresentaram tanto em festivais de dança como de teatro, performance, cinema e artes plásticas, por diferentes estados do Brasil (SC, SP, PR, PB, PE) e exterior (Argentina, México e Dinamarca). Com a ARCO também destaca-se as produções: Instalação coreográfica Territórios Imaginários (parceria com a Siedler Cia de Dança através do prêmio Elisabete Anderle de estímulo a Cultura-SC (2010) e a esquete cênica DOLLOP (2002). Participou como atriz nas produções Mi Muñequita (circulação nacional pelo projeto SESC Palco Giratório 2010) e Teatro de Quinta - Um Show de Humor (apresentações sistemáticas pelo estado de Santa Catarina - 2008/2010). Integrou a Andras Cia de Dança Teatro, desde sua fundação em 2004, até 2007, dirigida pelo coreógrafo Milton de Andrade. Com o grupo participou dos espetáculos 7 solos (2004), Quixote (prêmio DAMS, Bolonha, Itália, 2005), e Butterfly, (prêmio Funarte Klauss Vianna, 2006)

quarta-feira, 16 de março de 2016







Desenho de Narjara Reis

Sobre ilhas: limiares entre Morel e Desterro


* por Josimar Ferreira



“Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem.”
Gilles Deleuze

Depois da sombra, antes da sombra. Uma ilha separada de todas as realidades da terra firme é o lugar ideal para construir realidades imaginárias. Talvez, seja, por isso que Bioy Casares escolheu uma ilha para inventar seu mundo com imagens fac-similares, projetadas pela máquina de Morel, em um lugar possivelmente assombrado e encantado, povoado por fantasmas. Um território onde estamos diante de um passado insondável, repetido pela eternidade:

Os dois sóis e as duas luas: como a semana se repete ao longo do ano, vêem-se esses sóis e luas não coincidentes (e também os moradores com o frio em dias de calor; tomando banho em águas sujas; dançando no meio do mato ou sob o temporal). Se a ilha se afundasse - à exceção dos lugares em que estão as máquinas e os projetores -, as imagens, o museu, a própria ilha seguiriam visíveis. (1)

Ainda vejo minha imagem em companhia de Faustine. Esqueço que é uma intrusa; um espectador desprevenido poderia julgá-las igualmente apaixonadas e próximas uma da outra. Talvez, este parecer exija a debilidade dos meus olhos. [...] Minha imagem não passou, ainda, para a imagem; caso contrário, eu já teria morrido, teria deixado (talvez) de ver Faustine, para estar com ela numa visão que ninguém recolherá. (2)

Se histórias antigas são fábulas para se contar antes do anoitecer, então, os personagens de Morel parecem fazer parte dessas histórias com rastros de fantasmas. Didi-Huberman salienta que os personagens de contos de fadas, assim como os fantasmas sempre manifestam certa propensão para a melancolia: nunca chegam a morrer. Seres de sobrevivência, vagueiam como dibuks (alma penada) por algum lugar entre um saber imemorial das coisas passadas e uma trágica profecia das coisas futuras. (3) Sendo assim, a vida fantasmática das imagens constituem tanto nosso presente quanto nossa memória, tanto nosso imaginário quanto o lugar que vivemos (uma ilha desterrada).
As sombras em Morel se aproximam ao tempo do sonho, onde por algum momento o tempo para de operar, mas nesse exato momento diferentes temporalidades se bifurcam e os fantasmas irrompem na cena. Sombras do nosso passado mais profundo podem nos afetar de forma arrebatadora, mostrando nosso pior, enaltecendo nosso melhor. Aquilo que experimentamos a cada dia como imagens que nos rodeiam aparenta ser uma combinação de coisas novas, e sobrevivências vindas de muito longe de nossas próprias histórias ou de histórias da humanidade. Considerando que diante da imagem, estamos diante do tempo, e sendo o tempo movediço, podemos arriscar que os sonhos, são parte da vigília, ou como preferem os poetas e artistas, de forma esplêndida: que toda vigília é um sonho.
O mar cerca a ilha de Morel, um lugar ficcional. Cerca também a ilha do Desterro, nosso lugar de morada. Cerca muitas outras ilhas lendárias e imaginárias, lugares povoados por sombras e fantasmas. Borges nos conta que quando Samuel Coleridge viajou à Alemanha se deu conta de que nunca tinha visto o mar, apesar de tê-lo descrito admiravelmente, inesquecivelmente, em seu poema “The Ancient Mariner”. (4) Mas o mar não impressionou o escritor inglês, o mar de sua imaginação era mais vasto que o mar da realidade. Vivendo em uma ilha, estaríamos cercados pelo mar de águas turvas, ou pelo mar de águas do imaginário? Os fantasmas de uma ilha imaginária/ficcional não poderiam ser os mesmos fantasmas que assombram uma ilha com sólida localização geográfica? A ilha, assim como a noite, seria, então, o lugar dos fantasmas? O lugar das sombras duplicadas?
Morel poderia ser Desterro.


(1) BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 117.
(2) BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 124.
(3) DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 427.
(4) BORGES,  Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 189.


segunda-feira, 7 de março de 2016


O Pior de mim


por Flávio Dias*


Memória é sempre rascunho. E qualquer tentativa de passa-la a limpo é condenada já desde o principio ao fracasso. Díspares mais ainda buscar recapitular as paginas arrancadas. Se o processo de qualquer lembrança é reconstrução, as doloridas são teias de uma rede afiada onde algum mamífero marinho se debate assustado. Não há cura e nem cor para o pior nas recordações. O tempo delas é sempre presente, o único, o real. Vivo de novo o pior de mim cada vez como uma fita cassete VHS se infiltrando nas telas de alta e triste definição cotidiana. O pior de mim transpira com mãos que são luvas de dedos demasiado longos procurando trechos de textos escondidos nas contracapas dos cadernos de minhas irmãs. Um tapa perdido no meu filho é capturado por essa câmera sonâmbula e sem sorrisos. O pior de mim não se cansa como eu me canso depois de dias duros de trabalho e nem soluça arrependido. Se a verdade está na ficção, o pior de mim é dolorosamente real e sem sede, magro de maldades e infinitamente infiel ao desejo. O pior de mim é uma terça-feira suja de ignorar um amigo e o corte é brusco no plano seqüência. As frases são feitas como numa fábrica e o pior de mim tem uma navalha enferrujada na sola de cada pé de não ajudar alguém. Suicidar o amor numa fotografia 3x4 sem sorriso rasgada. Estranho como escrevendo essas linhas vejo que o pior de mim adora ser visto, mas não quer ser lembrado. Como um leão arrasando quarteirões pelo prazer da juba, pelo ego imenso e perverso desmoronando mosaicos, desencaixando os livros, desmontando os quebra-cabeças. O pior de mim abandona as vezes meu filho por namoradas, pela expectativa de um gozo que é coroa de espinhos. “Tudo um engano”, o pior de mim tenta me dizer em reverência endiabrada. “Nada é culpa tua”, o pior de mim me acaricia os cabelos ainda com sangue. Uma carícia metamorfoseando-se em dor como num plágio de um vinil arranhado. Eu traio as pessoas e respondo que fumo, ou não, dependendo do efeito que quero ter no meu interlocutor. Eu sinto saudade incandescente de meu país, das minhas ruas e penso que isso me autoriza certos caprichos feios de menino mimado. Eu sempre quero uma segunda chance, embora poucas vezes queira dá-la. Penso no meu sexo encontrando outro sexo e sou um terceiro elemento longínquo vislumbrando um quarto elemento ainda mais distante. E o pior de mim ainda quer ter seu charme e buscar esperança. O torpor do pior de mim as vezes me pega desprevenido e não tem tristeza. A tristeza, quando vem, é a face boa do pior de mim. E é ela a esperança renovada.



*Professor. Compositor - letrista. Cinéfilo. Brasileiro tecendo pontes entre o Lago Léman e o vento mais sul do sul do Brasil. Escritor. Impostor. Binômio do grupo helvético-brasileiro Prosa Poética.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016


Sobre a ausência

 

* por Erica Fiod


   A ausência é aquilo que prontamente me falta: a presença de alguém, a presença de mim mesma, a falta de um olhar destro e calma perante o mundo, o alívio, o amor, a comunhão, a alegria.

   A ausência do que me falta no peito é a minha profunda solidão. É o estar só em meio de tantas multidões. É o não querer abrir a janela e fitar o sol, o mundo, os olhos de outrem. A ausência é saudade. Saudade do que passou, saudade do que nunca vivi, saudade do que nunca viverei - minhas conjecturas e projeções. Sou uma estrangeira em terra de língua nativa.

   Como diz Camille Claudel: “Há sempre uma ausência em mim”.

   Há sempre uma saudade, um buraco, um vazio que não me é preenchido por nada nem ninguém. Essa saudade que não sai de meu corpo, de meus olhos, de minha pele, de minhas mãos é esse buraco de que jorra a minha fonte escondida e me faz buscar pelo que me falta e que não sei nomear, não sei colocar em palavras toda essa ausência. Do que sinto falta? Do outro? De mim? Da euforia? Talvez seja da necessidade de, dentre outras coisas, entrar em contato comigo mesma, de humanidade, de transumanização.

   Tem dias que consigo romper a barreira e abrir minha janela, preencher me do mundo, então, em dias assim, sorrio. Sou única, singular. Tenho minhas fraquezas e talvez o que eu chame de minhas fraquezas, seja, aos olhos dos outros, aquilo que  realmente  me faz valer a pena.

   O que realmente me comove é, de fato, a maneira de me tirar do estado de ensimesmada e de colocar o meu eu no centro de mim mesma. Penso que a alegria seja a forma de romper a solidão, e entrar em contato verdadeiro com o outro. A alegria e a dor provêm da mesma fonte. Não se sabe onde termina uma e se inicia a outra. E não adianta se procurar pela alegria, pela felicidade. Sentimo-nos felizes quando não estamos preocupados em sê-lo. Como diz Guimarães Rosa: “Felicidade se acha em horinhas de descuido.”

   E a cada nova alegria, eu reafirmo a vida. Sim! Porque ao reafirmar a vida, eu lhe faço um convite que é quase uma súplica: desperte em mim o meu melhor, os meus melhores sentimentos. Aceite o meu convite Apesar da dor, da sua e da minha, apesar da noite insone e da árdua luta contra nossos próprios demônios, apesar dos olhares de repúdio sobre mim, coloquemo-nos no centro da fogueira e... vamos dançar?

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016


Sobre as perdas

* por Barbara Biscaro


Quando formamos na mente a imagem de um desejo se realizando, quase sempre a concretizamos com um ganhar algo, nunca perder. O imaginário das perdas, associado geralmente com a morte e a tristeza, povoa os medos de tod@s nós: perder a saúde, o dinheiro, as pessoas amadas, os lugares, o status, o poder. Como se a adição fosse necessariamente uma operação feliz e a subtração aquela conta adiada, que desejamos fazer apenas na morte, quando a perda de si se torna inevitável.

O raciocínio pelas perdas tem me fascinado. Porque perder algo significa ganhar espaço para o desconhecido. Quando eu quero algo por adição, é como abrir o pacote do presente já sabendo o que é, um processo de confirmação que leva ao tédio da criança que fez a lista para o Papai Noel e confirma os itens, como um pequenino burocrata da felicidade. Quando eu quero algo por subtração, é como abrir uma porta na direção do escuro e se surpreender com algo que eu nunca suspeitaria que pudesse ser meu (ou com algo que eu nunca imaginaria que eu até mesmo desejasse). Tocar na maçaneta desta porta, experimentar o frisson da completa ignorância e sentir o sangue ferver em um momento inevitavelmente presente é uma coragem rara.

É muito difícil nos permitimos essa matemática: porque fugimos das equações do fracasso sem entender que elas são tão abstratas quanto aquelas do suposto sucesso. A separação do mundo por dualidades e opostos é confortável, mas ineficaz. Fracasso sendo o oposto de sucesso, o pior sendo o oposto do melhor? O desafio deste pensamento dual e excludente é uma das raízes de um projeto como O Pior de Mim, de Monica Siedler. Há meses conversando e dançando intensamente, uma das ideias mais lindas que Monica plantou em minha percepção, com sua pesquisa, é aquela de que geralmente o que temos de melhor é exatamente nosso pior. Sem opostos, sem exclusão. A velha história das doses que curam e envenenam igualmente. Não somos uma coisa ou outra. Somos tudo ao mesmo tempo, em intensidades diferentes; o que em uma situação pode ser um trunfo (como ser extremamente organizado no trabalho, por exemplo) pode ser seu inferno pessoal (não conseguir sobreviver em um mundo caótico).

O pior, então, não é avesso, nem somente sombra. O pior é aquilo que fascina porque é impossível não se identificar. Talvez tenhamos vivido muito tempo em um mundo em que uma suposta ideia de perfeição e higiene tenha obscurecido a percepção da humanidade que mora em nossas carnes, vísceras, pensamentos confusos, medos profundos. Quando Monica se propõe começar pelo fracasso e pela frustração de expectativas como tônica de um percurso artístico, ela não está definitivamente buscando uma forma ou um formato específico. É uma jornada, uma marcha em direção ao desconhecido que, se aprisionada em uma estética única, trairia toda a força que o ponto de partida proporciona. Não se trata de chafurdar na lama e depois embalar o bolinho de terra em uma caixinha bonitinha, tornando-o palatável para o mundo; trata-se de servir o inservível, apostando que tal honestidade seja mil vezes melhor.

A extrema coragem e beleza de alguém que se afunda neste processo é o que todos os dias eu tenho o privilégio de assistir em sala de trabalho. Uma mulher, que aceitando suas perdas e seus fracassos, está refazendo literalmente seus ossos em busca de uma dureza que tem a ver com estrutura e não rigidez. A antroposofia assinala os trinta anos com a fase do corpo em que os ossos adquirem a consistência final, tão necessária para encarar os trancos da vida adulta; nossos corpos buscam a rigidez do osso para potencializar a ação no mundo com estrutura, com consciência. Para mim é o que Monica faz todos os dias: refaz seus ossos, ganha os dentes em uma mordida precisa. Qualquer artista solo que avança na sua segunda década de trabalhos autorais e de pesquisa em dança e continua com rigor e determinação, sem esmorecer, para mim, é um sinal ou de uma resistência fascinante ou de uma teimosia sem fim – nosso melhor e pior. Fazer emergir a sombra como tudo o que é possível ser e descobrir que está tudo bem; abrir a maldita porta ao desconhecido, olhar nos olhos de tudo o que o mundo chamou de fracasso e dançá-lo como quem comemora a perda com uma grande festa: eis o que pode ser o pior de mim.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

 

Até quando?

* por Erica Fiod

Eu espero, a espreita, espero. Eternidade: onda do mar indo e vindo sob a areia da praia. A eterna espera por algo melhor, por ter algo realizado conforme o meu desejo e minhas vontades. Desejo muito e muitas coisas. Quem dera o mundo fosse a realização, mas a vida em si não é aquilo que se quer que seja e sim o que se consegue fazer desta. Sei disso e continuo esperando que tudo se resolva do meu jeito, por querer entrar em estado de entrega, de prontidão. Sempre planejo. Perscruto a mim e os labirintos dos outros, as vias, as possibilidades dos encontros, das resultantes. Mas e se a espera for em vão? Até lá já terei criado uma vida à parte, paralela, quiçá bem mais interessante do que os meus desejos satisfeitos, realizados. Dizem que às vezes há sabedoria em o mundo não nos conceder um desejo. Talvez seja o que me faça continuar a caminhar, a procurar, a perscrutar, não sei. Sempre quero me entender e busco entrar um pouquinho mais e mais no mistério de mim e do mundo. Entretanto, sim, tem coisas que é melhor não termos consciência a respeito ou enlouqueceríamos de vez. Será que o que vejo tem um olhar próprio que se difere de meus circundantes? Será que tenho assim uma maneira toda minha de ser? Posto que o objeto de nosso desejo não é apenas o alguém a quem estimamos e sim também o mundo que o envolve e o completa. Tenho necessidade de procurar o outro a fim de mudar o meu olhar perante o mundo. Sim, é-me necessário um trabalho interno constante de melhorar o meu olhar a partir de outrem. É doloroso, eu sei, mas me é essencial. Como diz Goethe, “Se queres entender o mundo, olhe para dentro de si mesmo. Se queres entender a si, olhe para o mundo.” No entanto, o mundo não é feito apenas de águas cristalinas e flores. Tenho em mim um jardim de sombras, um rio de sangue, uma vontade de bicho. Tenho que enfrentar os meus próprios demônios e tentar sair ilesa, uma vez que assim como o mundo, tenho e preciso de veneno. Veneno de cobra peçonhenta. Porque tudo o que é generoso demais, altruísta demais, sem sombra, enjoa e não é passível de plena confiança. Capacidade de amar até o azedume, até os defeitos, os seus e o meus. Preciso fechar o quarto em dias de sol, às vezes.

A minha espera: carne aberta em flor. Flor dilacerada em perfume. Inferno adocicado.

Com um fio condutor, que parte de minha intimidade, sonhando, eu espero. Espero pelo que? Ora, que pergunta...

Estou sempre escolhendo entre a vida e o sonho, entre a realidade e o delírio, entre alimentar os meus demônios ou meu cordeiro, com os pés submersos no rio da loucura misturada à sabedoria.

“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada.
A parte essa, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Tabacaria, Fernando Pessoa.


Será a espera, assim, inútil? Não há nada mais sem sentido do que viver, do que estar vivo e, no entanto, estamos vivos. Desconfio que isso seja um milagre. A possibilidade da vida é quase nula. A possibilidade de se dar certo, também. Milagres a parte, só sei realmente de minha espera. Só eu sei da vida que vou levando por enquanto que não se é, que não se pode ser em hipótese alguma, sendo. Talvez seja exatamente as distâncias que façam com que eu seja a todo instante e esteja sendo em um equilíbrio precário de quem anda constantemente numa corda bamba. Ou de perna de pau.

Não há descanso. Não há explicação. Não há saída. Não há escolha. A única via é a da espera e dentro da esperança viver como se pode e mesmo assim ser capaz de suportar um desalinho; o seu e o meu.

Faz tempo que espero. Talvez anos. Talvez, uma vida toda, não sei. Não sei se saberia viver de outra forma diferente do que me está posto, do que me cabe, do que me pertence. Faz tempo que eu espero e, nossa! Nessa espera, como já me dei! Como já me entreguei! E como já saí correndo de medo também. Já esperei tanto por um gesto, uma palavra, um olhar, um abraço, pelo ato. Não sei se tudo isso é mera criação minha (desconfio que sim), no entanto, já está tão entranhado em minha carne, em minha pele, em meu ser que vivo suspensa em sonho. Não sei ser aquilo que não sou, na maioria das vezes. A espera faz parte de mim e de minhas profundezas e é exatamente o desejo e essa espera que me fazem levantar da cama de manhã todos os dias e caminhar, comer, buscar em mim e nos outros, nas sombras, no fogo, nas cinzas, nas ruínas, nas ruas, nos meus e nos seus demônios, na porção do outro que falta em mim, na necessidade criada em mim pelo outro, na busca incessante de mim, do outro, do outromim. Então, dentro de minha espera infinda e nonsense, pergunto-me:

Será que eu sobreviveria ou conseguiria continuar vivendo se, por ventura, um gênio da lâmpada me concedesse todos os meus desejos?

Qual é a parte do mundo que me pertence? De que matéria é feita a minha realidade?


“Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando a morte
Esperando o norte
Esperando o dia de esperar alguém
Esperando enfim nada mais além
Da esperança aflita, bendita, infinita, do apito do trem
(...) esperando o trem
Que já vem, que já vem, que já vem, que já vem...”
Pedro Pedreiro, Chico Buarque.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

 

- O tempo que faz –


 
“O tempo. Já em inglês: time/weather; e em latim: tempus/coelu. Superioridade do grego: chronos/era; estado do céu; eudia, bom tempo; ombrios, chuvoso; cheimon: tempestuoso, etc. - galene, calmo sobre o mar etc. – Em francês: o-tempo-que-faz: introduzimos um fatitivo, o que mostra bem que o importante na noção é uma relação ativa do sujeito com o presente.” 
(Barthes – A preparação do romance – Aula do dia 20 de janeiro de 1979).


Me pego de soslaio a pensar: o que constitui o essencial de nossas experiências em um tempo que faz? Em um Chronos em perpétua anomalia com Saturno. No ápice de experiências vividas e por hora em estado de apreensão, sobressalta um eco de recônditos distantes: “De onde se originam verdadeiramente nosso bem e nosso mal?”. Caro F. Nietzsche, me acompanha na difícil súmula de ir ao encontro do mar e esquecer qualquer discernimento entre a origem de um bem e a contra-efetuação de um suposto mal. Quais são os valores e juízos que impuseram o hábito de se constituir as ações humanas sob o prisma da moral? Penso nas inversões, me distraio nas imensas faltas que assombram supostos mandarins do bom gosto. Será que o bem, o mal, o gosto, o hábito constituem os senhores de um mesmo caminho?

O genealogista alemão apostaria na inversão, diria que a moral é um equívoco dos homens do conhecimento, dos sujeitos imbuídos de razão. E não obstante, referencia a razão ao bem, sejamos racionais e letrados em nossos plenos argumentos de sentido – sou suspeita – o pior de mim- se constitui em somente aceitar o que tem todo o sentido – minhas pernas fraquejam diante do não sentido. É preciso coragem e silêncio para atravessar o deserto e não se ser nobre o tempo inteiro. Quando é possível no ato da Experiência Viva (Erlebnis) identificar a sua porção de maldade ou quiçá de bondade? Sob quais julgos transitam as extremidades que supomos constituir nosso ser e agir?

É preciso aprender a ver, pensar, falar, escutar e dançar com os nossos impossíveis – eles estão aí, transfigurando-se. Há um momento no meio do caminho da vida que é desleal apreciar Sísifo e se torna essencial manusear o nosso Mal de Arquivo, despedir os guardiões para os portões se abrirem. As armaduras podem ser leves, mas não como pés de pombos, as dicotomias só me chegam na preeminente suposta existência de um outro. Será a moral uma forma saturada de se viver junto?


Carolina Votto*
Noites de verão 2016

*formada em filosofia e mestre em história e teoria das artes visuais.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016




Quem quase disse uma palavra perdeu no segundo em que hesitou. O momento era aquele. Como que faz pra repetir o mesmo com intensidade e novidade? O teatro é a arte do fracasso. Apenas quando o teatro perde é que algo interessante acontece para o espectador. O gozo da atriz está no camarim, na coxia, no bar após a apresentação. no erotismo daqueles que tem medo de se expor. O fetiche da garota mentirosa que atua. Mas quando ela fracassa é que o público se apaixona de verdade. Quando a atriz está cansada e entregue aos fantasmas alheios. Quando é atuada pelos movimentos das suas células fluídos gases ventos sopros e pavor. Quando o que emerge é o que está por trás, no limite entre a pele e o espaço. A pele arde, o sangue é contaminado pela possibilidade do castigo pelo pecado. O pecado de dar-se. O prazer imediato. O azar que a persegue pelo sobrenome que a indica. Antepassados. Os piores fantasmas. Aqueles que habitam um gesto, um modo de olhar, um tique, um timbre de voz. Nada é autêntico naquele corpo até o momento em que se abre para a vida sem medo de errar. Uma sensação seguida de queda abrupta. Todo dia cair e levantar, comprimir-se e expandir. Quando entender que a vida é isso será isso até o fim daí é que o bicho pega e só mesmo uma boa dança uma boa foda uma boa briga uma boa risa uma boa ducha uma boa praia uma boa boca uma boa cerveja uma boa chuva uma boa torta uma boa conversa uma boa pasta uma boa lua uma boa vida, a mesma vida, mas com o olhar para o fim.