* por Vitor Chucre, estudante de filosofia
A vida pode ser linda, feia ou sem sentido, e toda situação pode trazer a tona nossas piores partes, e percebemos que quando o ser humano cria fantasias de uma vida melhor, é apenas por que precisa desesperadamente compreender e aceitar sua existência tal qual é no planeta e essa é uma forma de lidar com as piores coisas que a vida nos apresenta. Temos uma necessidade constante de entender como o universo funciona, seus processos e leis, pois o que nos perguntamos o tempo todo é: Como e por que estamos aqui? Qual valor eu tenho? Será que existe escolha? Minha vida está tal qual deveria? Existe alguma coisa que eu realmente tenho controle? Minha existência é justificável ou até que ponto meu lugar é tolerável, aceitável ou concebível? Pensar em tudo isso é um movimento na luta pelo nosso direito a identidade e subjetividade, que temos que garantir a todo momento num exercício de justificar nossa presença no espaço ou nosso acesso aos recursos.
Essa agonia por saber de onde viemos e para onde vamos, é consequência da nossa eterna prisão: A consciência. Note-se que essa é a prisão perfeita pois ela não está fora, e não limita nossas ações de forma externa. Carregamos a consciência conosco e em qualquer lugar precisamos pensar uma maneira de satisfazê-la respondendo por que e como estamos aqui e até que ponto temos controle do que pensar, viver, sentir, cair, doer, ou ser bem sucedido, alcançar objetivos ou viver numa eterna dança entre azar e sorte. Tudo isso por que simplesmente sabemos que existimos. O ser humano é uma das poucas espécies que tem noção de sua existência e, portanto da existência dos seus pares, o que nos dá a capacidade pensar universos, pois se eu tenho um mundo só meu e inúmeras formas de interpretar silêncios e sons, luzes e sombras e ações ou repousos, imagino que meus pares também tem. Essa relação complexa entre todos esses possíveis universos particulares cria uma realidade social em que o tempo todo eu preciso lutar pela minha existência, em um primeiro momento ao reconhecê-la, aceita-la e defendê-la pra mim mesmo pra num segundo momento trabalha para que o mundo também o faça.
Dentro do processo de pensar tudo isso recebi o convite de assistir ao espetáculo “O Pior de Mim” de Monica Siedler, achei o espetáculo genial, por que apesar de estar até um pouco indisposto no inicio da apresentação essa indisposição passou quando os movimentos de dança começaram. A proposta de usar uma vivencia corporal de reconhecimento da existência do corpo com o aqui-agora, o controle do corpo numa percepção da existência, suas ações e reações respondendo ao efêmero e irreproduzível mas mantendo uma pré concepção de si remeteu a todo esse processo interno de aceitação da dor e do descontrole, da falta de capacidade de parar o tempo e os fatores externos, onde o corpo precisa reagir a tudo e se preparar para qualquer movimento ou risco que pode ser necessário a garantia da sobrevivência.
Suas expressões faciais remetiam a essa tentativa de controle, um modelo de percepção do sujeito social expressando essa percepção, como se as expressões duras e até agressivas em um rosto delicado, com traços angelicais que remetem a uma boneca de porcelana, uma coisa frágil mas que naquele momento precisa projetar uma força que garanta o respeito ao corpo, pois o rosto, numa perspectiva social, garante nossa identidade, como uma impressão digital da alma. Nesse espetáculo é possível perceber que o rosto dança as vezes até mais que o corpo, e a performer deixa isso muito claro no momento que esconde o rosto pra dar força a expressão corporal ,num movimento, tanto de retirar a delicadeza dos traços da bailarina como de mostrar a força que um corpo sem rosto tem ou não.
Esse balé tem claramente influencias da rua e obviamente se inspira na força projetada pelos seres frágeis que perderam sua capacidade de imprimir seus rostos na memória social. As moradoras de rua vivem esse eterno conflito de, sendo extremamente frágeis e vulneráveis, estarem o tempo todo projetando uma força surpreendente e às vezes até assustadora. no inicio da performance, a bailarina pode ser confundida com uma “mendiga” louca carregando seu saco de materiais recolhidos na rua. No auge da apresentação se percebe que esse trabalho vai além das expectativas e uma breve conversa com Monica nos mostra que até pra ela.
Por ser uma concepção baseada no efêmero, é perceptível que a contemporaneidade e o mundo líquido de Bauman se traduzem em dança num espetáculo que consegue realmente fazer o espectador refletir sobre o pior de si, pois este vive no presente. Temos uma tendência de colocar o nosso melhor em um passado nostálgico ou projetá-lo em um futuro glorioso e as expressões de agonia, dor e sofrimento da dançarina nos trazem pro agora, pois é onde essas sensações ficam. Monica Siedler, em sua performance consegue nos trazer o sentimento e a reflexão do incomodo, nos fazendo lembrar do papel crítico e até terapêutico da arte, que abraça o fracasso e assim alcança o sucesso.